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[ al(i)terada ]

há sempre o sol,
o som da sorte.
a faca é fria;
a face, forte.

o corpo é cura;
o canto, corte.
amar a esmo;
o mais é morte.

no velho esvai-se
a pose, o porte;
a nau se engana,
cem nós, sem norte.

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[ minha justificativa ]

Ela segurou-a firme nas mãos, mas com alguma ternura. Olhou-a um pouco, deu dois tapinhas leves e esperou. Avermelhou levemente, foi-se avolumando, o sangue escuro preenchendo as grossas veias, que agora ficavam vistosas, ganhavam definição, como se a superfície da pele fosse um minimalista mapa hidrográfico. A enfermeira sorria. Segurava-a, alisava vagarosamente a mais grossa daquelas linhas e sorria.

– É tão bom quando é assim. Respondeu rápido. Vai penetrar com mais facilidade.

Em seguida, abandonando a ternura antes mencionada, num gesto preciso e contínuo, espetou a agulha.

Todo aquele elogio à ostentação vascular da minha mão esquerda era, afinal, um preâmbulo para o golpe sem misericórdia. Naquele momento, alguma coisa dentro de mim começava a mudar. Talvez seja esse evento, não uma explicação zodiacal, a gênese de minha ininterrupta desconfiança com relação às pessoas. Tenho tentado vencê-la quando não me sinto ameaçado e isso costuma me fazer bem.

Passei toda a tarde de ontem, por exemplo, na emergência do hospital universitário. Apesar do pinhão, das festas juninas e da elegância no vestir das pessoas, o começo do inverno sempre me traz a asma também. Os primeiros dias são terríveis, mas depois de um pequeno tratamento, tudo volta ao normal e meus alvéolos fazem seu trabalho regularmente. Ontem, portanto, foi meu começo oficial de inverno.

Uma moça, acompanhada por uma mulher mais velha, chegou à sala de medicação com o nebulizador e a seringa com um líquido transparente.

– E agora, profe?

– Agora faz o garrote e injeta o remédio, Fran.

Depois de se jubilarem com minhas veias saltadas e gordas, ela pegou aquela agulha que fica presa a uma espécie de borboletinha de plástico e posicionou-a. O dispositivo estava tão na vertical que achei que ela não ia furar a veia, mas brincar de me fazer estigmas. A professora nada disse. Respirei fundo. Ela picou. Foi fundo, voltou, procurou a veia, tentou injetar um pouco, não conseguiu, desistiu.

– Doeu, moço?

– Bastante.

– Tens que colocar a agulha quase paralela à veia, Fran. Tá muito em pé. Vamos trocar de lugar. Pega o braço direito.

Não falei nada. Não reclamei. Não tentei amenizar o evidente desconforto e nervosismo da aluna. Não fiz menção a nada do que se passava. Apenas olhava e respondia quando me perguntavam o “dói?”. Nisso, ela conseguiu acertar. Tudo ia bem. Olhei para a Fran e me ocorreu uma história.

– Tenho uma prima que é auxiliar de enfermagem também. Ela costumava treinar essas coisas no próprio corpo. Eu achava tão legal.

– Ela trabalha onde? Perguntou a profe.

– Num hospital no interior do RS, em Carazinho.

Com um misto de horror e incredulidade no olhar, ela respondeu.

– Credo! Eu jamais conseguiria!

Depois de conseguir realizar sua tarefa e embaciar seus óculos de tanta transpiração, ela olhou para mim um pouco envergonhada.

– Obrigado, Fran.

– Eu é que agradeço. Você foi muito paciente.

– Deve ser daí que vem o nome. Piada ruim, não precisa rir.

– Hahahahaha!

Antes de saírem, a professora doutora voltou.

– Também tenho asma. Corticoide é uma merda, mas vai te ajudar bastante nesse começo. São só 7 dias, depois só ano que vem. Te cuida.

– Obrigado mais uma vez.

Quando a residente me liberou, já estava escuro lá fora. Garoava fino e havia um vento gelado, mas bem suave. Fiquei um pouco na entrada vendo as pessoas que chegavam. Uma das menininhas que acompanhavam o pai com AVC parecia essa minha prima de Carazinho, a Tina. Casou cedo, teve filhos, abriu uma mercearia, engordou e morreu com o marido aos 34 anos num acidente de carro. Nunca foi à universidade. Nunca estudou enfermagem. Não podia ver sangue, por isso era o marido quem carneava o porco quando chegava o tempo. Ontem, porém, outra Tina nasceu. É auxiliar de enfermagem, treina com seringas no próprio corpo e mora no imaginário de uma professora e uma aluna. Vive, afinal, a vida que a outra não conseguiu. Foi esse o meu raciocínio para justificar aquela narrativa que tão espontaneamente surgiu em mim e que precisei libertar. Algumas histórias são como o sangue: precisam ser derramadas também fora do corpo.

veias