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Física, Shakespeare e adaptações

Já era levemente estranho que, em pleno “horário do parquinho” [ou seja, hora livre para fazer o que quiser], uma turma de 4º do ensino fundamental [com idades entre 9 e 10 anos] estivesse na biblioteca em um dia ensolarado e quente. Mais estranho ainda o grupo de 4 meninas à mesa, concentradíssimas, com livros de Física do ensino médio. Isso mesmo: Física do ensino médio. Afinei a audição e comecei a perceber o que se passava.
1) Baaaaaah, olha só isso aqui: “O Sol é a fonte primária de energia que garante a existência da vida na Terra”.
2) Ah, eu já sabia disso. Pode ver que todo mundo que não pega sol fica com cara meio de morto.
3) É verdade, fica mesmo.
4) A Física explica muita coisa, né? Mas é muito difícil isso aqui.
2) Imagina tudo que a gente pode aprender até chegar nesse livro. Nem vamos mais precisar dele.
1) Verdade, mas vou continuar lendo. Eu gosto de não entender as coisas [ <3 ]
Na mesa próxima, dua outras meninas discutiam o conteúdo a ser estudado:
– Ah, mas tem que estudar sobre o Stephen Hawkings, né?
– Ih, não sei, mas esse livro aqui tem sabe o quê? S-h-a-k-e-s-p-e-a-r-e. Eu li uma tragédia dele, mas não lembro o nome. Só lembro que gostei demais.
-Mas tu sabe que isso aí não é o texto de verdade né? É uma adaptação. Esse aí tem uma linguagem mais fácil.
Houve um pequeno silêncio, enquanto a outra pensava numa resposta adequada:
– Bom, amiga, mas é o que a gente consegue por enquanto, né? Se um dia a gente vai estudar aquela Física ali e vai saber, duvido que não consiga ler o Shakespeare de verdade.
– Não é “de verdade” que se diz, Fulana, é “no original”. A gente vai ler no original.
– Ai, desculpa, pro-fes-so-ra…
E ambas saíram dali rindo.

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O melhor ano da minha vida OU História de (alg)uma(s) carona(s)

Nota: eu achei que tinha publicado esse texto no fim do ano passado, mas minha postagem programada não funcionou e só me dei conta disso agora. Aí vai, com atraso mesmo, porque 2014 mereceu.

"Hitchhiking near Vicksburg, Mississippi in 1936", fotografia de Walker Evans
“Hitchhiking near Vicksburg, Mississippi in 1936”, fotografia de Walker Evans

Segundo meu “Livro de caronas” [um caderninho no qual eu anoto algo sobre as pessoas a quem dou carona], em 2014 eu recolhi pessoas de 12 países [Argentina, Uruguay, Equador, Angola, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Austrália, Espanha e República Tcheca] e de 10 estados brasileiros [RS, SC, PR, SP, MG, GO, BA, AP, MS, MT]. No total, foram 76 pessoas diferentes. Entre elas, algumas eu levei mais de uma vez.

O caso mais curioso é o de um cara que mora na Fortaleza da Barra [definitivamente o grande destino dos que embarcam comigo] a quem eu já dei carona 12 vezes só neste ano. Numa quinta-feira, saindo duma reunião pedagógica, as nuvens resolveram drenar seu conteúdo e jogaram tudo aqui pra baixo. Eu tava quase sem visibilidade e um carro na contramão me fez encostar bem na calçada pra escapar da colisão, aí o farol iluminou o ponto de ônibus uns 10 metros adiante. A figura me pareceu familiar. Parei o carro no ponto e o reconheci. “E aí, véio, queres carona?”. Ele só não chorou porque não deixei.

– Poooooorra, irmão! Eu tenho a impressão de que se eu levantar as mãos pro céu e pedir ajuda em qualquer lugar, tu aparece logo em seguida!
– Esse teu deus é bem zoeiro, mandou logo um ateu, hahaha.
– Ah, ele tem seus métodos, né? hahahaha. Cara, tô bebaço, sem grana e ainda dei um topaço numa pedra antes de a chuva começar. Sentei no ponto, olhei pro chão e achei 5 reais. Não deu 1 minuto, tu apareceu. Isso não é um sinal divino?
– Olha… eu tenderia a achar que é apenas sorte pra caralho. Eu também sou um cara de muita sorte, o que é perigoso, porque me faz confiar apenas nela em alguns momentos.
– Ah, se eu dependesse da minha sorte… tava frito, irmão.
– Não é o que eu tô vendo. Quem sabe tu começa a acreditar que esse é o ano em que ela vai mudar.
– Deus te ouça, deus te ouça, mesmo tu não acreditando nele, hahahaha.
– Amém! Hahahaha.
– Se não for pedir demais, bota aquele ska maneiro que tavas ouvindo o outro dia.
– É pra já!

Coincidência ou não, este foi um ano também para mim de muitas mudanças. Nem todas foram pacíficas, benéficas ou prazerosas. Por outro lado, aconteceram tantas coisas boas, pequenas coisas, que não há como não me sentir tentado a achar que este foi o melhor ano da minha vida. Já houve tantos outros melhores anos da minha vida que eu poderia fazer uma modesta coletânea deles. O que torna este em específico muito bom, entretanto, é certamente a forma pela qual aprendi a olhar o mundo. Sentado aqui na varanda de casa, a Midi no puff ao meu lado, a bicicleta azul ali estacionada, meu violão sempre solidário com minha melancolia, as bananeiras carregadas e a chuvinha caindo de leve, não posso deixar de pensar nisso com gratidão. Não sou grato a nenhuma força superior, nenhum ser divino, nenhum esoterismo. Sou grato às coisas como elas são, sem etiquetas, sem position papers, sem teses ou dissertações. Sou intransitivamente grato. Tenho todos os motivos para isso e faço questão de materializar esse reconhecimento na escrita. E obrigado pela leitura.