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[ nesse ínterim ]

Minha primeira namoradinha morreu hoje. Talvez ela nem lembrasse mais de mim porque não fui seu primeiro e duvido muito que tenha sido um dos mais marcantes. Eu era jovem, egoísta e ilhado demais para me ocupar em deixar marcas em alguém. O velório está acontecendo a umas três quadras da minha casa, mas não gosto de velórios. Achei mais importante registrar o fato e uma frase que ela disse. “A gente não vai funcionar. Tu é uma pessoa legal, é inteligente, educado, calmíssimo, mas não tem brilho”. Passei a vida correndo atrás disso mesmo sem ter ideia do que se tratava. Um dia, uma namorada disse “O que eu mais gosto em ti é esse teu brilho no olhar. Ele está em tudo que tu faz”. Casamos e ficamos juntos até o dia em que ela morreu, há um par de anos. A primeira e a última se foram. Nada do que aconteceu nesse ínterim foi tão relevante para ser lembrado, exceto os amores – poucos, mas infinitos. O que resta agora é um álbum desbotado, uma música antiga e uma indefinida espera.

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Pequena, mas de marca

[Ontem à noite; aproximadamente 22:30; Beira-mar norte; perto da entrada do Habib’s].

Ouvi um barulho estranho e resolvi encostar o carro para ver o que era. Tão logo desci, um cidadão se aproximou. Usava uma jaqueta jeans, uma calça de moletom preta, uns tênis bem detonados e uma mochila apoiada num ombro só. Tinha dois sotaques bem familiares: oeste catarinense e bêbado.

– Boa noite, amigo. É o seguinte… Não vou mentir pra você, acabei de sair do presídio ali e tô com muita fome. Não quer me apoiar num lanche ali [apontando o Habib’s]?
– Cara, só espera eu ver se não tem nada aqui no carro e te apoio nesse lanche. Já vai te encaminhando pra lá, tá chovendo aqui.
– Sem palavras, irmão, sem palavras. A gente faz merda na vida, mas a gente paga, né? Eu paguei as minhas, mas agora eu quero sossego. Tenho família, não posso mais vacilar.
– Aham, mas só deixa eu me concentrar aqui mesmo e a gente já conversa.
– Foi mal, foi mal, já vou pra lá.

Depois de verificar que era só a borracha da porta traseira que estava meio frouxa [por isso o barulho], fui até lá. Ele me viu chegando, sorriu e mandou:

– Cara, eu já sei o que vou fazer pra te compensar. Vou te apoiar nessa jaqueta aqui, ó?

Enquanto eu dizia que não era necessário, ele repetia “mas é de marca, ó” e tentava infrutiferamente tirá-la pra me mostrar a etiqueta. Quase caiu umas duas vezes nesse processo.

– Amigo, eu não quero a tua jaqueta. Não vai me servir. É muito pequena pra mim.

O argumento foi infalível. Entrei, comprei quatro esfihas e dei a ele.

– O que é essa coisa verde aqui?
– É espinafre. Não gosta?
– Eu gosto de tudo. Mas ainda bem que você não comprou de carne. Quem sabe de onde vem essas carnes aí? Eu não como carne na rua. A da cadeia era terrível.
– Só imagino. Cara, o papo tá bom mas eu preciso ir.
– Muito obrigado mesmo, mas não querendo ser abusado, sabe o que tá me faltando só? R$ 3,15 pra pegar o ônibus e voltar pra casa. Eu moro lá no Rio Vermelho, sabe?
– Rio Vermelho?

Pensei por alguns instantes e não consegui conter meu impulso de bom samaritano.

– Se tu me promete que não vai ficar falando muito daqui até lá, te dou uma carona. É sério, tô com muita dor de cabeça, hoje foi um dia péssimo [mentira].
– Nem acredito, cara! Tu vai fazer isso por mim? Tu não é viado, não tá querendo só me levar pra grupo?
– Não, cara, não sou viado, eu moro bem perto do Red River, não me custa nada ir um pouco adiante.
– Sem palavras, irmão, sem palavras.

A viagem foi, como eu previa, prolixa. O cidadão falava sem trégua. Quase no final, que ficava a uns 2 Km da minha casa, perguntei:

– Que horas saíste… de lá?
– Ah, não sei, faz uns 3 dias já.
– 3 dias??? Entendi tu falar “ACABEI de sair do presídio”.
– Ah, mas 3 dias aqui fora pra quem ficou um ano lá dentro…
– Entendi.
– E tu, já puxou cana?
– Não exatamente. Já fui casado, e às vezes me sentia encarceirado.
– Deuzulivre, sei beeeem como é isso.
– Quando eu tinha 16 anos, os dois PMs do bairro me fizeram passar a noite na “cela” da sede deles junto com mais dois amigos. Foi até divertido.
– Mas o que vocês fizeram?
– Briga de torcida organizada. Tomei um tijolaço de raspão na cabeça, o pai de um amigo meu botou um revólver na minha cara, apedrejei um CTG onde os “inimigos” se esconderam. Foi nesse nível, a coisa.
– Mas ah, maloqueiragem! De que time? Não vai me dizer que tu é do Grêmio?
– Sim, sou gremista.
– [visivelmente emocionado] Eu sabia, só um gremista pra me quebrar um galho desses. Foi a mão de deus olhando por mim.
– Se fosse a mão de deus, teu benfeitor teria sido um argentino com duas buchinhas de pó e não um gremista ateu. Mas se tu fosse colorado, eu te ajudaria da mesma forma.
– Ah, gaudério, não me decepciona! [ambos rimos]. Ah, é ali, é ali, ó. Pode parar por aqui.

Encostei o carro. Ele sai, veio à minha janela, apertamos as mãos e ele agradeceu mais uma vez.

– Valeu, dos meus! Se algum dia você precisar de alguma coisa, já sabe onde eu moro. Qualquer coisa, mas que não dê cadeia, né?
– Fica tranquilo. Se eu precisar, apareço.

Nisso, sai a mulher dele à rua. Negra, bem alta, corpulenta, segurando uma faca numa mão e uma mandioca na outra; visivelmente furiosa. Eu teria esperado uma recepção mais amável.

– Ah, então é assim, safado? Sai pra fazer rancho e volta bêbado, sem nada na mão e de taxizinho? 3 dias depois?
– Shhhh, amor, não faz barraco, vamos entrando que eu já te explico…

A única coisa que me ocorreu foi que perdi de sair disso com pelo menos uma jaqueta. Pequena, claro, mas de marca.