– Você pensa em morrer aqui, Sandro?
A pergunta me pegou de surpresa. A bem da verdade, nunca pensei em morrer neste ou naquele lugar, ser enterrado deste ou daquele jeito, ser cremado ou transformado em sabonete alergênico e distribuído aos poucos desafetos assumidos, estar velhíssimo numa cama com a família ao redor ou ver meu paraquedas falhar a dois mil pés de altitude. Juro, é tipo “whisky ou água de coco?”. Entretanto, dessa vez a coisa me pegou desprevenido. Depois de muito divagar, notei que o olhar dela denunciava um misto de pavor e incompreensão.
– Tá muito louco isso tudo que estou falando?
– Sim, está. – ela respondeu.
Aproveito para confessar que adoro a objetividade chinesa. É sempre tudo no olho, sem eufemismo, sem vaselina.
– É que morrer é uma aventura complexa mesmo e quem está morto não pode nem discordar de mim.
– Morto? Calma, calma. Não, eu não quis dizer “morrer”, eu quis dizer “morar”. Desculpa, hahahaha.
– Hahahaha! Puxa, aí é outra história. Não sei se pretendo morar aqui para sempre, mas tenho três anos e meio pela frente ainda, então ainda tenho muito no que pensar.
– É verdade.
A conversa voltou ao tópico inicial [alguma coisa sobre pronomes oblíquos]. A aula acabou e cada um seguiu seu rumo. No caminho para casa, sentei um pouco em frente ao prédio e fiquei olhando aqueles barcos de carga lentamente fazendo suas manobras. Ao fundo, à esquerda, os grandes resorts com seus cassinos encrustados como pequenas pérolas nas quais se pode apostar os ganhos de toda uma vida em um lance de dados. Bem à direita, no alto da montanha, a centenária capela portuguesa em sua vigília permanente. O rio à frente, parado, pesado, escuro. A chuva apressando os passos dos que escolheram a noite como companhia. Não tenho mais dúvidas. É tão interessante morar aqui quanto aqui mesmo entregar a moeda ao barqueiro. Aqui é bom porque aqui é o que existe agora.
Category: China
Cortei uns 60% da barba, mas ainda está maior do que a de 90% da população barbuda da China. As estatísticas, fabriquei-as com aprumo, por isso acredito que sejam precisas. Foi por uma boa cau$a, mas me sinto desnudo. No espelho até que me saio bem, mas aquele vácuo quando vou passar a mão para pensar em algo ainda é meio assustador. Vai passar, claro. Arranquei uns dois fios dos que me pareciam os maiores antes de me submeter à tosa. Um caiu no chão do escritório e o vento o jogou longe. O que ficou tem 25 cm. A espessura é impressionante. Se tivesse juntado uns três e feito uma trança, daria pra mandar pro World’s Strongest Man, para aquelas provas tipo rebocar um Boeing com a boca. O problema seria eles cortarem os fios com os dentes, mas bem pensadinho em tudo se dá jeito. Cogitei enrolar esse fio remanescente como se fosse uma mola e guardá-lo em um cubo de âmbar. Se no futuro quisessem me clonar, esta seria uma boa forma de adquirir uma fonte, mas o uso principal seria como adorno mesmo. Imagina só aquilo ali, na mesinha de centro, sozinho, inquisidor. A visita finalmente não se aguenta e pergunta o que é. O dono responde que é de uma pessoa que já se foi daqui há muito tempo, mas que deixou um fio de sua barba ruiva como legado. Não satisfeito, escreveu um texto sobre a ideia e publicou-o num local de acesso público e ilimitado, mas de poucos visitantes. O fio da barba de um homem desconhecido é, afinal, assunto para poucos, sobretudo se ele, o homem, não foi clonado. Para cada visita, ele, o dono, pode contar uma história diferente. Um condenado por falsificação de passaportes internacionais; um vendedor de lembranças esotéricas; um milionário ególatra que, como último desejo, escolheu que seus cabelos, unhas, ossos e – o horror, o horror – sua coleção de tazos seriam todos eternizados em âmbar. Chegaria o dia em que alguém o desmascararia. Opa, já ouvi a história desse negócio antes e era diferente. O dono tragaria seu cachimbo uma vez mais – não consigo pensar nele sem uma boina xadrez e um cachimbo -, sem nenhuma pressa, e diria que todos nós éramos diferentes. Depois disso não diria mais nada, assim como a visita, que nunca mais voltaria e nunca mais deixaria de pensar nessas palavras. E o cubo lá, impávido, alheio, uma divindade no meio da mesinha de centro.
Adquiri há não muito um hábito bastante simples do qual não abro mão nem em dias de chuva. Aliás, em dias de chuva ele é ainda mais prazeroso por não haver o sol atacando meu desprotegido couro cabeludo. Certamente tenho bonés e chapéus, mas já estão todos muito feios e velhos, mais até do que eu, de modo que prefiro preteri-los sempre que posso. Ah, quase esquecia, trata-se, o hábito, de dar uma caminhada até a biblioteca universitária após o almoço, subir ao terceiro andar, precisamente à seção de línguas estrangeiras, ir às prateleiras dos livros em Português, pegar algo ao acaso e ler por uma ou duas horas, dependendo do livro e do sono. Nos primeiros dias, em meu trajeto até lá, acompanhava com entusiasmo e curiosidade o curso do riacho que corta o campus. Não só as centenas de carpas brancas e alaranjadas que o povoam me agradavam imenso, mas também o murmúrio das estudantes sentadas nos bancos ao longo da mureta, decorando textos em voz alta para alguma prova. Essas ladainhas chinesas, embora longe de qualquer caráter litúrgico, davam-me a sensação de adentrar um templo e eram a própria benedícite que eu mesmo não proferia. Pois em uma de minhas últimas incursões peguei “O servo de deus & A casa roubada”, do Aquilino Ribeiro (1885-1963), um dos grandes escritores portugueses de todos os tempos, mas menos conhecido no Brasil do que aquela rapaziada do século XIX que insistimos em empurrar goela abaixo nos moleques de colégio. Ok, Aquilino também nasceu no tal século, no finalzinho, mas começou a publicar em 1907. Já tinha lido algumas coisas dele antes, como os romances “Andam faunos pelos bosques”, minha iniciação, e “O homem que matou o diabo”, além dos contos de “Quando ao gavião cai a pena”. Não era nenhuma novidade, portanto, a forma como ele trata a religiosidade, a crendice, a superstição, a fé e aquela parente próxima de todas essas amigas: a loucura. Em “O servo de deus”, primeira das novelas desse volume, temos a história de Bigorril, um homem que se atribui uma missão de servilidade e que busca, através do ostracismo e de uma vida miserável, o merecimento ao paraíso. A história começa quando ele, em sonho, se encontra com deus. Não há como não se divertir com o quase sadismo com o qual a divina aparição desmonta as alegações de que Bigorril estaria no caminho certo. As aventuras do heróis são fruto, claro, desse sonho e, mais especificamente, duma voadora com os dois pés no peito que ele leva de seu deus, que pode ser visualizada na imagem abaixo.
Uma das coisas que mais gosto no Aquilino é a mistura sempre precisa que faz de uma linguagem erudita, culta, quase roçando o empolamento, e uma língua popular, coloquial, que brota tão espontaneamente de suas personagens quanto de seus narradores. Também é essa combinação de registros diferentes, quase antagônicos, uma das coisas com as quais mais me divirto quando escrevo. Quanto a isso, encerro com uma confissão: embora não tenha sido meu primeiro mestre nessa malandragem, Aquilino Ribeiro é certamente uma das fontes das quais muitos martelinhos servi sem jamais, como bom discípulo, deixar nada ao santo.
A companhia com a qual tenho viajado nas últimas 4 idas e vindas ao Brasil é a Ethiopian Airlines. Eu poderia elogiar algumas coisas, como o menu vegano ou o infinito profissionalismo das comissárias de bordo – além da elegância de seus trajes “típicos” e do sorriso absurdamente radiante das etíopes, que certamente estão entre as mulheres mais lindas do mundo -, mas o real motivo é que eles sempre vendem o ticket mais barato.
Apesar de ser um país de várias línguas, um dos principais idiomas etíopes é o Amárico [que tem um dos alfabetos mais lindos do mundo, por sinal]. Ora, mesmo gostando muito de estudar idiomas e tendo uma queda pelas coisas diferentonas da vida, nunca achei que saber mais do que “āmeseginalehu” [obrigado] – porque eles repetem isso mil vezes nas mensagens durante o voo – e “minimi āyidelemi” [de nada] – porque achei que era importante saber – fosse exatamente um déficit, principalmente porque todo o pessoal de bordo normalmente fala Inglês o suficiente para o serviço.
Pois na última volta à terra de Mao, em novembro, consegui ficar num assento daqueles triplos, no meio, sem ninguém ao meu lado. Lógico que virou cama. Três assentos só pra mim era tudo que eu queria desde minha primeira viagem pra cá em 2015. Dormi um sono lindo, confesso. No meio dele, entretanto, o charutão bateu no beiço, o mergulhador ameaçou abrir a escotilha, o Mr Hanky pediu pra sair. Levantei a cabeça ainda meio grogue e, com muita alegria, vi que a luz do banheiro estava verde. Quase num pulo, me lancei pelo corredor em direção à glória da resolução desse tão infame problema fisiológico humano. Que vocês não se assustem com minha súbita mudança de linguajar, mas a verdade seja dita: ninguém segura um cu que quer dar passagem tanto para fora quanto para dentro. Sobre este último caso faço apenas um exercício supositório, já que não tenho muita experiência nisso à exceção da alheia. Com relação ao primeiro, entretanto, não convém ir mais fundo. Que essas pequenas vitórias fiquem lá esquecidas nos intestinos de nossas memórias pessoais. Quase num pulo, me lancei pelo corredor, eu dizia. Pois nesse descuidado movimento acertei em cheio uma das comissárias, justamente a que mais tinha quebrado meu galho na hora do rango, e, por consequência, derrubei o copo d’água que ela trazia na mão. A moça, dotada dessa educação que só alguém acostumado a lidar com a gentalha emplumada que é 99% desse pessoal que anda de avião por aí, mandou um “I’m sorry” antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Ainda meio no susto, tudo que consegui dizer foi “āmeseginalehu“. Ela fez uma cara divertidíssima e respondeu quase rindo “minimi āyidelemi“. Foi aí que eu vi a idiotice e me desculpei de verdade.
— Desculpa, eu não queria dizer «Obrigado» depois de te atropelar, mas era tudo que eu sabia, hahaha.
Ela tomou ares de professora e muito pausadamente disse “ānichi k’onijo neshi“. Eu repeti sem pestanejar “ānichi k’onijo neshi“. Ela disse “de novo“. Eu, bem enfático, mandei o melhor “ānichi k’onijo neshi” que consegui. Ela fez uma cara de aprovação e disse “Muito bem, sua pronúncia está muito boa“. Era meio óbvio, mas só para garantir, perguntei se “ānichi k’onijo neshi” significava “me desculpe“. Ela deu uma risadinha marota e respondeu:
— De jeito nenhum. Isso significa «Você é bonita». Para se desculpar basta dizer “yik’irita“. Bem mais fácil, não?
Desnecessário dizer que virei fã dela, mas tive que mandar meu “Ih, quirida” e, aproveitando a luz ainda verde, correr lá pra bater aquele papo com a dona Celite, sempre presente nas horas difíceis da vida, independente dos nomes que assuma e dos alfabetos com os quais se os grafem.