Cortei uns 60% da barba, mas ainda está maior do que a de 90% da população barbuda da China. As estatísticas, fabriquei-as com aprumo, por isso acredito que sejam precisas. Foi por uma boa cau$a, mas me sinto desnudo. No espelho até que me saio bem, mas aquele vácuo quando vou passar a mão para pensar em algo ainda é meio assustador. Vai passar, claro. Arranquei uns dois fios dos que me pareciam os maiores antes de me submeter à tosa. Um caiu no chão do escritório e o vento o jogou longe. O que ficou tem 25 cm. A espessura é impressionante. Se tivesse juntado uns três e feito uma trança, daria pra mandar pro World’s Strongest Man, para aquelas provas tipo rebocar um Boeing com a boca. O problema seria eles cortarem os fios com os dentes, mas bem pensadinho em tudo se dá jeito. Cogitei enrolar esse fio remanescente como se fosse uma mola e guardá-lo em um cubo de âmbar. Se no futuro quisessem me clonar, esta seria uma boa forma de adquirir uma fonte, mas o uso principal seria como adorno mesmo. Imagina só aquilo ali, na mesinha de centro, sozinho, inquisidor. A visita finalmente não se aguenta e pergunta o que é. O dono responde que é de uma pessoa que já se foi daqui há muito tempo, mas que deixou um fio de sua barba ruiva como legado. Não satisfeito, escreveu um texto sobre a ideia e publicou-o num local de acesso público e ilimitado, mas de poucos visitantes. O fio da barba de um homem desconhecido é, afinal, assunto para poucos, sobretudo se ele, o homem, não foi clonado. Para cada visita, ele, o dono, pode contar uma história diferente. Um condenado por falsificação de passaportes internacionais; um vendedor de lembranças esotéricas; um milionário ególatra que, como último desejo, escolheu que seus cabelos, unhas, ossos e – o horror, o horror – sua coleção de tazos seriam todos eternizados em âmbar. Chegaria o dia em que alguém o desmascararia. Opa, já ouvi a história desse negócio antes e era diferente. O dono tragaria seu cachimbo uma vez mais – não consigo pensar nele sem uma boina xadrez e um cachimbo -, sem nenhuma pressa, e diria que todos nós éramos diferentes. Depois disso não diria mais nada, assim como a visita, que nunca mais voltaria e nunca mais deixaria de pensar nessas palavras. E o cubo lá, impávido, alheio, uma divindade no meio da mesinha de centro.
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Banalidades do cotidiano elevadas à condição de crônica.
Adquiri há não muito um hábito bastante simples do qual não abro mão nem em dias de chuva. Aliás, em dias de chuva ele é ainda mais prazeroso por não haver o sol atacando meu desprotegido couro cabeludo. Certamente tenho bonés e chapéus, mas já estão todos muito feios e velhos, mais até do que eu, de modo que prefiro preteri-los sempre que posso. Ah, quase esquecia, trata-se, o hábito, de dar uma caminhada até a biblioteca universitária após o almoço, subir ao terceiro andar, precisamente à seção de línguas estrangeiras, ir às prateleiras dos livros em Português, pegar algo ao acaso e ler por uma ou duas horas, dependendo do livro e do sono. Nos primeiros dias, em meu trajeto até lá, acompanhava com entusiasmo e curiosidade o curso do riacho que corta o campus. Não só as centenas de carpas brancas e alaranjadas que o povoam me agradavam imenso, mas também o murmúrio das estudantes sentadas nos bancos ao longo da mureta, decorando textos em voz alta para alguma prova. Essas ladainhas chinesas, embora longe de qualquer caráter litúrgico, davam-me a sensação de adentrar um templo e eram a própria benedícite que eu mesmo não proferia. Pois em uma de minhas últimas incursões peguei “O servo de deus & A casa roubada”, do Aquilino Ribeiro (1885-1963), um dos grandes escritores portugueses de todos os tempos, mas menos conhecido no Brasil do que aquela rapaziada do século XIX que insistimos em empurrar goela abaixo nos moleques de colégio. Ok, Aquilino também nasceu no tal século, no finalzinho, mas começou a publicar em 1907. Já tinha lido algumas coisas dele antes, como os romances “Andam faunos pelos bosques”, minha iniciação, e “O homem que matou o diabo”, além dos contos de “Quando ao gavião cai a pena”. Não era nenhuma novidade, portanto, a forma como ele trata a religiosidade, a crendice, a superstição, a fé e aquela parente próxima de todas essas amigas: a loucura. Em “O servo de deus”, primeira das novelas desse volume, temos a história de Bigorril, um homem que se atribui uma missão de servilidade e que busca, através do ostracismo e de uma vida miserável, o merecimento ao paraíso. A história começa quando ele, em sonho, se encontra com deus. Não há como não se divertir com o quase sadismo com o qual a divina aparição desmonta as alegações de que Bigorril estaria no caminho certo. As aventuras do heróis são fruto, claro, desse sonho e, mais especificamente, duma voadora com os dois pés no peito que ele leva de seu deus, que pode ser visualizada na imagem abaixo.
Uma das coisas que mais gosto no Aquilino é a mistura sempre precisa que faz de uma linguagem erudita, culta, quase roçando o empolamento, e uma língua popular, coloquial, que brota tão espontaneamente de suas personagens quanto de seus narradores. Também é essa combinação de registros diferentes, quase antagônicos, uma das coisas com as quais mais me divirto quando escrevo. Quanto a isso, encerro com uma confissão: embora não tenha sido meu primeiro mestre nessa malandragem, Aquilino Ribeiro é certamente uma das fontes das quais muitos martelinhos servi sem jamais, como bom discípulo, deixar nada ao santo.
A companhia com a qual tenho viajado nas últimas 4 idas e vindas ao Brasil é a Ethiopian Airlines. Eu poderia elogiar algumas coisas, como o menu vegano ou o infinito profissionalismo das comissárias de bordo – além da elegância de seus trajes “típicos” e do sorriso absurdamente radiante das etíopes, que certamente estão entre as mulheres mais lindas do mundo -, mas o real motivo é que eles sempre vendem o ticket mais barato.
Apesar de ser um país de várias línguas, um dos principais idiomas etíopes é o Amárico [que tem um dos alfabetos mais lindos do mundo, por sinal]. Ora, mesmo gostando muito de estudar idiomas e tendo uma queda pelas coisas diferentonas da vida, nunca achei que saber mais do que “āmeseginalehu” [obrigado] – porque eles repetem isso mil vezes nas mensagens durante o voo – e “minimi āyidelemi” [de nada] – porque achei que era importante saber – fosse exatamente um déficit, principalmente porque todo o pessoal de bordo normalmente fala Inglês o suficiente para o serviço.
Pois na última volta à terra de Mao, em novembro, consegui ficar num assento daqueles triplos, no meio, sem ninguém ao meu lado. Lógico que virou cama. Três assentos só pra mim era tudo que eu queria desde minha primeira viagem pra cá em 2015. Dormi um sono lindo, confesso. No meio dele, entretanto, o charutão bateu no beiço, o mergulhador ameaçou abrir a escotilha, o Mr Hanky pediu pra sair. Levantei a cabeça ainda meio grogue e, com muita alegria, vi que a luz do banheiro estava verde. Quase num pulo, me lancei pelo corredor em direção à glória da resolução desse tão infame problema fisiológico humano. Que vocês não se assustem com minha súbita mudança de linguajar, mas a verdade seja dita: ninguém segura um cu que quer dar passagem tanto para fora quanto para dentro. Sobre este último caso faço apenas um exercício supositório, já que não tenho muita experiência nisso à exceção da alheia. Com relação ao primeiro, entretanto, não convém ir mais fundo. Que essas pequenas vitórias fiquem lá esquecidas nos intestinos de nossas memórias pessoais. Quase num pulo, me lancei pelo corredor, eu dizia. Pois nesse descuidado movimento acertei em cheio uma das comissárias, justamente a que mais tinha quebrado meu galho na hora do rango, e, por consequência, derrubei o copo d’água que ela trazia na mão. A moça, dotada dessa educação que só alguém acostumado a lidar com a gentalha emplumada que é 99% desse pessoal que anda de avião por aí, mandou um “I’m sorry” antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Ainda meio no susto, tudo que consegui dizer foi “āmeseginalehu“. Ela fez uma cara divertidíssima e respondeu quase rindo “minimi āyidelemi“. Foi aí que eu vi a idiotice e me desculpei de verdade.
— Desculpa, eu não queria dizer «Obrigado» depois de te atropelar, mas era tudo que eu sabia, hahaha.
Ela tomou ares de professora e muito pausadamente disse “ānichi k’onijo neshi“. Eu repeti sem pestanejar “ānichi k’onijo neshi“. Ela disse “de novo“. Eu, bem enfático, mandei o melhor “ānichi k’onijo neshi” que consegui. Ela fez uma cara de aprovação e disse “Muito bem, sua pronúncia está muito boa“. Era meio óbvio, mas só para garantir, perguntei se “ānichi k’onijo neshi” significava “me desculpe“. Ela deu uma risadinha marota e respondeu:
— De jeito nenhum. Isso significa «Você é bonita». Para se desculpar basta dizer “yik’irita“. Bem mais fácil, não?
Desnecessário dizer que virei fã dela, mas tive que mandar meu “Ih, quirida” e, aproveitando a luz ainda verde, correr lá pra bater aquele papo com a dona Celite, sempre presente nas horas difíceis da vida, independente dos nomes que assuma e dos alfabetos com os quais se os grafem.
[ nesse ínterim ]
Minha primeira namoradinha morreu hoje. Talvez ela nem lembrasse mais de mim porque não fui seu primeiro e duvido muito que tenha sido um dos mais marcantes. Eu era jovem, egoísta e ilhado demais para me ocupar em deixar marcas em alguém. O velório está acontecendo a umas três quadras da minha casa, mas não gosto de velórios. Achei mais importante registrar o fato e uma frase que ela disse. “A gente não vai funcionar. Tu é uma pessoa legal, é inteligente, educado, calmíssimo, mas não tem brilho”. Passei a vida correndo atrás disso mesmo sem ter ideia do que se tratava. Um dia, uma namorada disse “O que eu mais gosto em ti é esse teu brilho no olhar. Ele está em tudo que tu faz”. Casamos e ficamos juntos até o dia em que ela morreu, há um par de anos. A primeira e a última se foram. Nada do que aconteceu nesse ínterim foi tão relevante para ser lembrado, exceto os amores – poucos, mas infinitos. O que resta agora é um álbum desbotado, uma música antiga e uma indefinida espera.
A atendente do restaurante, já quase terminando meu prato, começa a conversa:
— Posso te perguntar uma coisa?
— Pode sim.
— Eu sou de São Luís, sabe?
— Sei, claro.
— Então, lá tem uma banda chamada Tribo de Jah.
— Que nome interessante. É banda de quê?
— De reggae. Lá tem muito reggae, mas eles são os mais famosos.
— Talvez eu tenha ouvido já. Gosto muito de reggae e ska.
— Ska eu não sei o que é, mas vou pesquisar. Escreve S, K, A?
— Isso, assim mesmo.
— Então, como vens aqui de vez em quando, toda vez que ouço tua voz, eu lembro da voz desse cara, o vocalista da Tribo de Jah. Cantas também, é?
— Canto muito, mas só no chuveiro ou em festas com som bem alto.
— Mas a tua voz é boa, devias cantar. Meu marido só me conquistou porque é bonito, gosta de música e a voz dele é muito boa. Ele me fala bom dia de manhã e eu já fico animada o resto do dia.
— Puxa, que bonito isso! A minha voz de manhã parece a do Darth Vader.
— Esse é aquele malvadão do filme lá, né?
— Sim, ele mesmo. Até que as pessoas me conheçam, eu sou um malvadão de filme em tempo integral. Mas teu marido canta?
— Ele cantando desafina muito, mas é tão bonitinho. A gente tá casado há 18 anos já.
— É uma vida.
— Sim, é a vida da minha mais velha, a Soraia. Soraia tá na Alemanha, namora com um polonês.
— Ah, a Polônia. Tem muita banda boa lá. Tem uma que tu vai gostar: VESPA. Assim mesmo, igual em Português, VESPA. É uma banda de ska. Eu tenho uma história muito boa envolvendo vespas, uma construção abandonada e meu irmão, mas se eu te contar agora vou comer macarrão frio.
— Ai, desculpa, dá aqui que eu esquento mais um pouco. Enquanto isso, tu vai contando a história.
Resumindo, esquentei esse macarrão umas 3 vezes, comi ali no balcão mesmo, contei várias histórias e conheci uma banda famosa de São Luís chamada Tribo de Jah que, segundo me disse a moça, tem vários cegos na formação, menos o vocalista, fato que me torna, junto com a voz e o gosto pelo reggae, ainda mais próximo dele.
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Nota: LÓGICO que eu conheço a Tribo de Jah há mil anos, mas não dava pra encerrar a conversa ali, né?
Ah, a universidade! Tempo, para muita gente, dos primeiros porres; das primeiras sarradas; das primeiras decepções amorosas; das primeiras viagens coletivas (rodoviárias ou metafóricas); dos primeiros baseadinhos no bosque; dos primeiros tequinhos nos banheiros mais obscuros; das primeiras festinhas das quais se volta sem saber como; dos primeiros filhos que, como 99% da humanidade, não foram planejados; da primeira pedrinha encontrada no feijão do RU; do primeiro namorado(a) comunista; enfim, tempo de muitas novidades, umas boas, outras ruins, mas todas absolutamente construtivas.
Entretanto, nessa fissão que se opera entre o Ensino Superior e seu antecessor Médio, algumas das lacunas que se abrem são difíceis de se preencher. Dentro desse angustiante conjunto, uma se destaca mais do que todas: a substituição de uma palavra lúdica, festiva, congregadora, por outra que não faz mais do que delimitar o espaço entre dois períodos de tempo. Em outras palavras, a chaga que se abre quando passamos a usar “intervalo” em detrimento de “recreio” é do tipo para a qual, meus amigos e amigas, não há bálsamo que seja capaz de curar.
Aluno da escola, mas não meu aluno, aproximadamente 10 anos, começa o papo:
— Tu deixa essa barba assim pra chocar as pessoas?
— Não, é só porque eu gosto mesmo.
— Só por isso?
— Só.
— Ah, que pena.
Fila do caixa no Angeloni dos Ingleses. O casal à minha frente, uns 60 anos ambos, conversavam sobre a educação dos brasileiros em contraste com a dos argentinos. Disseram muitas coisas interessantes, mas que não vêm ao caso agora. Depois de atendidos, o senhor disse empolgado à moça do caixa:
– Muchas gracias. ¡Que tenga um buen fin de semana, aunque trabajando!
Ao que ela respondeu:
– Ah, muito obrigado, pra vocês também! Mas melhor trabalhando do que desempregada, né?
– Ah, sí, por supuesto. ¡En eso estamos de acuerdo! Hasta pronto.
– Até mais.
É certo que a compreensão que um tinha do idioma do outro, mesmo não falando nada em língua alheia, era ótima, mas uma coisa ficou bastante clara: a cordialidade, como indica a etimologia, vem lá do centro abstrato do músculo cardíaco, e esse, meus amigos, é poliglota bagarai.
Aquele clássico: tava chegando na esquina, o bus passou. Vazio ainda por cima. Nem um minuto depois, pá, o executivo. Viagem tranquila, mesmo com a moça roncando [de leve] no banco de trás. Quando eu tava lá na frente, já na porta esperando pra descer, o motorista me olhou, riu e virou pra frente de novo. Olhei pra frente, aí me olhou de novo. Virei pra ele, que sorriu, deu uma gaguejada, mas acabou falando.
– Tu vai rir, mas tu me lembra uma pessoa… por causa da barba. O frei Francisco. Eu era coroinha lá em Lajeado, eu e meu primo. Ele era bem velho, o frei Francisco, mal andava. Deixava a gente tomar o vinho dele.
Eu só balancei a cabeça e sorri. Não sei se ele viu o sorriso, porque o meu é meio embargado por fora, mas por dentro garanto que tava gigante. Normalmente penso e interajo rápido, mas dessa vez não senti vontade, não vi necessidade, mas senti que havia muita coisa não dita. O sorriso dele ia completando essas lacunas às quais não tive acesso.
O ônibus foi parando, mas continuei esperando a conclusão. A porta se abriu, mas como só eu desceria ali, dei aquela hesitada. Ele encerrou:
– Mas olha, era um vinho bem bão! Hahahaha.
– Dá pra ver nos seus olhos! Obrigado. Boa viagem.
– Boa aula.
Tudo aconteceu muito rápido, talvez um minuto, no máximo. Um minuto é um intervalo através do qual a memória, em sua infinita capacidade de dilatar o que os ponteiros metrificam, consegue conectar cidades, nomes, vinhos e vidas com seu implacável gatilho.