Aluno da escola, mas não meu aluno, aproximadamente 10 anos, começa o papo:
— Tu deixa essa barba assim pra chocar as pessoas?
— Não, é só porque eu gosto mesmo.
— Só por isso?
— Só.
— Ah, que pena.
Aluno da escola, mas não meu aluno, aproximadamente 10 anos, começa o papo:
— Tu deixa essa barba assim pra chocar as pessoas?
— Não, é só porque eu gosto mesmo.
— Só por isso?
— Só.
— Ah, que pena.
Tava tomando café numa padariazinha aqui do centro e entraram dois moleques vendendo chocolates. Os dois muito bem apresentados, roupinha nos trinques, cabelio lambidinho pro lado e tudo. Venderam alguma coisa, mas as pessoas sempre olham com aquela cara desconfiada, puxam a bolsa pra mais perto do corpo, fingem que estão fazendo uma ligação, enfim. Eles vieram à minha mesa e achei que, apesar do visual estar interessante, eles precisavam de mais do que isso. Resolvi ajudar.
— Olha só, moskiridus… a roupa tá massa, cabelo penteado e tudo, mas vocês já notaram que as pessoas ainda olham pra vocês de canto de olho, né?
— Sim, e isso é bem chato. A gente tá trabalhando, elas não enxergam? – Disse o mais velho.
— Cara, até enxergam, mas ignoram. Posso propor um teste pra vocês?
— Pode.
— Na próxima abordagem, digam assim
Boa tarde, senhor(a). Hoje a gente tá trazendo uma informação.
[aí vocês esperam a reação; se houver, continuem; se não houver, continuem igual]
O(a) senhor(a) sabia que o dono da Cacau Show começou vendendo chocolate num Fusca? Pois então, a gente ainda vai demorar pra poder dirigir, mas até lá, estamos batalhando pra que seja um carro mais novo, né?
[aí apresentam o produto].
— Hahahaha, legal! Gostei disso.
— Então, é fácil. É só decorar o texto. Vou escrever aqui nesse papel.
— Não, não, grava aqui no meu celular.
— Ok, gravo. – E gravei mesmo.
— Massa, tio.
— Massa nada, agora me dá um chocolate desses aí pelo serviço prestado.
— Sério?
— Claro, rapaz. Ou tu acha que as pessoas vão te dar alguma coisa de qualidade assim, do nada, de graça? Isso aqui é o planeta Terra, não é assim que funciona.
— Tá bom, tá bom, tó.
Peguei o chocolate, fingi que li o rótulo, entreguei-o de volta.
— Tem leite, não como. Tenho alergia.
— Então pega esse aqui que não tem leite, mas é bem ruim e é mais caro.
— Não tem problema, não vou te pagar mesmo.
Esperei uns segundos e continuei:
— Mentira, cara, não quero teu chocolate, tava só te testando.
— Mas pode pegar mesmo, tio.
— Não quero, não gosto de chocolates, na verdade.
— Uma mulher me disse esses dias que não dá pra confiar em quem não gosta de chocolates.
— E quem foi que te deu um conselho útil, ela ou eu?
— Tu, né.
— Então ela falou bobagem. O papo tá bom, mas agora preciso ir.
– Valeu pela dica, tio.
— Não por isso, mas se tu me chamar de tio de novo, te penduro no ventilador de teto.
Ambos saíram correndo e, já na porta, gritaram quase juntos:
— Falôôôôô, tio!
Moral da história: eu sabia que um dia aquelas historinhas que aparecem nas revistas de bordo da Gol iam ser úteis.
P.S.: adoro chocolates, só achei que era mais fácil encerrar a conversa assim.
Diálogo presenciado ontem entre um pai e sua filha, de uns 7 anos, numa sorveteria:
– Mas tu acha justo, filha, eu ficar assando a carne por horas e depois ter que ajudar a lavar a louça ainda?
– Mas ela também trabalhou antes de assar a carne.
– Olha, tem muita coisa de desigualdade ainda porque é uma coisa histórica. As mulheres não tinham acesso à educação, aí foram ficando sempre com os trabalhos que pagavam menos. Mas esse negócio de o homem ficar assando a carne e a mulher lavando a louça é diferente. Isso é muito mais biológico do que cultural.
– Biológico??? [ela realmente se espantou]
– Sim. É só ver o que acontece na natureza.
Nesse momento, fiquei imaginando uma esquilinha [perdoem o neologismo] lavando as nozes que compraram no Macro [na promoção] enquanto o esquilinho coloca fogo no carvão para começar o churrasquinho. Me ajudou a entender melhor a proposição do nobre papai.
– E te digo mais, filha. Todo mundo tem opiniões diferentes, mas o que é errado é a gente ser niilista com as nossas opiniões. Sabe o que é niilista?
– Não sei.
– É extremista. Não pode ser extremista, achar que só o que a gente pensa é que está certo.
Ela estava visivelmente pouco convencida pelas palavras do pai e seguiu firme em seu sorvete. Já eu, mera testemunha, fui embora meio descrente no tal “progresso nas relações de gênero” do qual se tem falado tanto, mas absolutamente firme na minha ideia niilista [ou seja, extremista] de que o certo mesmo é não fazer churrasco de jeito nenhum.
#GoVegan
Já era levemente estranho que, em pleno “horário do parquinho” [ou seja, hora livre para fazer o que quiser], uma turma de 4º do ensino fundamental [com idades entre 9 e 10 anos] estivesse na biblioteca em um dia ensolarado e quente. Mais estranho ainda o grupo de 4 meninas à mesa, concentradíssimas, com livros de Física do ensino médio. Isso mesmo: Física do ensino médio. Afinei a audição e comecei a perceber o que se passava.
1) Baaaaaah, olha só isso aqui: “O Sol é a fonte primária de energia que garante a existência da vida na Terra”.
2) Ah, eu já sabia disso. Pode ver que todo mundo que não pega sol fica com cara meio de morto.
3) É verdade, fica mesmo.
4) A Física explica muita coisa, né? Mas é muito difícil isso aqui.
2) Imagina tudo que a gente pode aprender até chegar nesse livro. Nem vamos mais precisar dele.
1) Verdade, mas vou continuar lendo. Eu gosto de não entender as coisas [ <3 ]
Na mesa próxima, dua outras meninas discutiam o conteúdo a ser estudado:
– Ah, mas tem que estudar sobre o Stephen Hawkings, né?
– Ih, não sei, mas esse livro aqui tem sabe o quê? S-h-a-k-e-s-p-e-a-r-e. Eu li uma tragédia dele, mas não lembro o nome. Só lembro que gostei demais.
-Mas tu sabe que isso aí não é o texto de verdade né? É uma adaptação. Esse aí tem uma linguagem mais fácil.
Houve um pequeno silêncio, enquanto a outra pensava numa resposta adequada:
– Bom, amiga, mas é o que a gente consegue por enquanto, né? Se um dia a gente vai estudar aquela Física ali e vai saber, duvido que não consiga ler o Shakespeare de verdade.
– Não é “de verdade” que se diz, Fulana, é “no original”. A gente vai ler no original.
– Ai, desculpa, pro-fes-so-ra…
E ambas saíram dali rindo.
Olhei para a tela assim que ouvi o bipe e percebi que, considerando que só havia dois atendentes, demoraria para que eu fosse atendido. Além do mais, passava um pouco da hora de fechar e eu tinha esquecido um documento no guarda-volumes, então teria que armar o ataque retórico para que me autorizassem, tão logo fosse atendido, a buscá-lo no armário lá fora, na área dos caixas eletrônicos. Num gesto automático de desconforto, respirei fundo e, enquanto soltava a respiração, passei a palma da mão vagarosamente pela barba, começando com o indicador sobre o lábio inferior e terminando na pontinha do último fio. Olhei para o lado e percebi que um menino de não mais que uns cinco anos me observava, sorria e me imitava, afagando uma barba imaginária. Sorri para ele também. Ele olhou para o outro lado e cochichou para a irmã “ele é barbudo, olha”. A irmã, apenas um pouco mais velha, mas já impregnada desse misto de decoro, polidez e moralidade de que são feitas as interações sociais com estranhos no mundo adulto, olhou para a mãe, mais ao lado, buscando aprovação para a reprimenda que acabava de dirigir ao gurizinho. Continuei sorrindo, mesmo não sendo algo que costume praticar com assiduidade. Não por rabugice, é só porque nunca gostei do meu sorriso. Ele criou coragem e me perguntou o porquê de deixá-la assim.
– Porque eu vou ser o Papai Noel quando ficar velho.
– Ah, mas a barba dele é branca, a tua é meio vermelha.
– Mas a minha camiseta é branca. Quando eu ficar velho, inverte: a roupa fica vermeha e a barba fica branquinha.
– Aí tu sai por aqui com aquele sacão cheio de presentes, né? Mas lá em casa é meu pai que compra, o Papai Noel eu só vejo no shopping.
A irmã, de repente, imbuiu-se de um senso de cumplicidade quase comovente e interveio:
– Ele é o filho do Papai Noel.
Ele me olhou de novo, mais cuidadoso, um pouco incrédulo, mas desejoso de acreditar.
– É verdade?
– Claro. Mas por enquanto, eu vivo como todo mundo. Vou à aula, ao trabalho, ao banco. Só posso ser Papai Noel depois de bem velhinho.
Ele não disse mais nada. Só se deixou ficar ali, meio boquiaberto por alguns segundos, absorto em suas reflexões, os olhos cheios daquele brilho das pequenas descobertas.
Chamaram minha senha, afinal. Apesar da ótima companhia ter aliviado a espera, minha tão nobre e rara ascendência, infelizmente, não tornou mais sólido o meu apelo ao atendente e tive que aceitar, inconsolável, a derrota da lábia frente à regra.
Me pedem sugestão para o nome dum baile de carnaval infantil, sugiro Pedofolia, aí me esculacham impiedosamente. Francamente, tá cada vez mais difícil viver num mundo no qual as pessoas não manjam dos radicais gregos.