Categories
Textos

[ medusa ]

Eu tinha certeza do que aconteceria quando eu encontrasse a mulher mais linda do mundo. Foi hoje.
Ela estava no ponto do ônibus; ouvia música no fone e sorria. Subiu primeiro e sentou-se. Tomei lugar num banco ligeiramente à frente, na fileira do lado oposto, assim poderia observá-la pelo reflexo do vidro. Não conseguia olhá-la diretamente, sentia meu corpo enrijecer.
Durante os 37 minutos da viagem, pensei em qualquer coisa pra dizer, uma desculpa qualquer ou mesmo um desses galanteios óbvios, mas efetivos pela elegância; desses que, pese sua absoluta falta de pioneirismo, são sutis como arredar uma franja. Sentia um peso enorme nas pernas cada vez que tentava levantar. Eu gaguejaria, certamente. No fundo, não queria nada, não tinha nenhuma pretensão de dizer algo que impressionasse, que a fizesse sorrir e, depois de alguma conversa, me rendesse um nome e um telefone. Nos metros finais antes do terminal, já me contentaria em dizer a ela de sua condição na ordem mundial das beldades. “Moça, és a mulher mais linda do mundo. Agradeço a atenção”. Pronto, estaria bem assim. Se já não estivesse ciente, saberia disso ali, naquela vulgar situação coletiva, sem aviso, sem expectativas. Eu seria como um repórter, não mais que isso. Ela dormiria bem nesta noite. Talvez esteja mesmo deitada agora, pensando que aquele cara à sua frente queria dizer algo, que era um covarde, mas que seria lindo tê-lo ouvido dizer pessoalmente algo assim exagerado e sincero em uma circunstância daquelas, tão desprovida de qualquer erotismo, mesmo que não quisesse respondê-lo convenientemente. Como entendi que eu não diria nada, aproveitei para escrever. Na saída, juntei todas as forças que me restavam, dobrei o manuscrito e dei a ela. Não parecia surpresa; sorriu, colocou-o no bolso. “Achei que não ias entregar; vou ler com calma; sei onde te achar”, e se foi.
É tal a história que tento explicar a estes implacáveis senhores em minha casa: até esta tarde, não faria qualquer esforço para pagar minha dívida. Tudo mudou, entretanto. Há mais alguém que sabe me encontrar.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

2 replies on “[ medusa ]”

Consigo resistir a qualquer coisa, mas a beleza me leva a nocaute fácil, fácil… e assim fazemos burrada, mas pelo menos recebemos nosso quinhão de prazer. Ainda bem!

E é justo esse quinhão que vale toda a “fraqueza” de não resistir à beleza. Acho que até consigo resistir a ela quando quero, mas que isso faz um mal danado… ah, faz.

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.