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[ cadivos ]

1) comparação
Olho-a de minha janela. Move-se qual caracol. Cada passo, cada gesto, cada subir e descer de pálpebras parece a concretização de um ancestral cronograma, elaborado sem apuros e disposto a jamais ser levado a cabo. Ajusto-me ao cair e subir desses ponteiros vivos, aceito seu tique sem taque com certa resignação ante minha própria condição. Movo-me cá; comparo. Sou, sem dúvidas, mais rápido. Grandes olhos anilados se escondem naquele rosto, vizinhados por sulcos, vê-se, acostumados às correntezas salgadas do pranto. Balbucios. Não os entendo. Não faço questão. A chuva filtra minha visualização, transforma o real em impressionista, mas me ajuda a permanecer em meu discreto, quase invisível, afazer. O azul daquelas órbitas é de tons vencidos; já prescreveram sua cota de contemplação do mundo. Hoje, de lá não se fazem nítidos quaisquer contornos, só luz e trevas se diferenciam em espectrogramas que pouca variação aceitam: é catarata. Espreitam, apesar, o movimento, o Esse fluxo cinemático da ladeira em frente ao sobrado. Corpos que ascendem, descendem, incendeiam-se em incursões táteis noite adentro.
Estou obcecado. Quero ter certeza. Persigo meu próprio eixo, para trás, para frente. Giro. Não consigo evitar um sorriso. Um atrasado mostrar de dentes, que cumpriu longa pena sob estes lábios petrificados, mas aproveitou-se e fugiu. Sou, sem dúvidas, mais rápido. Houvesse alguém para confirmar minha constatação, já me daria por satisfeito, mas não é o caso. Serei minha própria testemunha, como sempre. Acaso não é a decadência alheia, muitas vezes, nossa própria transcendência? Para mim é, nego não.

2) contemplação
A filha entrou na sala falando alto, quase gritando. A velha não liberta palavra, só abaixa levemente a cabeça, olhando mais uma vez para a rua; nela vê sua salvação. Não sabe como nem por que pensa nisso, mas prefere não se questionar. Olhar a rua, olhar a vida que não tem mais. Espiar, pela cortina entreaberta, os casais de namorados que descem, mãos dadas balançando, sorrisos fáceis, é um regresso a tempos onde havia beleza em seu rosto, em seu corpo, em seus pensamentos. Surpreende-se com um sorriso, não demora a cerceá-lo. Bobagens; são bobagens que lhe assomam as ideias.
Olha para o relógio, conta giros. Calcula mentalmente horas e minutos faltantes para um dos remédios. Tenta se lembrar qual deles, sem sucesso. Olha a folha da receita, aproxima o rosto, desiste, vai em busca dos óculos. Prefere, com grande esforço, abaixar-se para recolhê-los embaixo da fruteira a solicitar uma rápida leitura à filha sentada à sua frente. Sente-se, apesar de tudo, independente nestes pequenos atos; microscópicas vitórias pessoais. A consequente dor nas costas é como uma cicatriz depois da guerra: souvenir.

By Sandro Brincher

Eu sou aquele que, de fones nos ouvidos, através da janela empoeirada do ônibus, perscruta os paralelepípedos irregulares da calçada de um parque à procura de alguém que tenha, ao resgatar do fundo das algibeiras um maço de cigarros molhados pela chuva que acaba de dar trégua, derrubado um bilhete premiado de loteria.

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