Estávamos à mesa. Eu comia com pressa porque era meu aniversário e, depois do bolo e do insuportável “Parabéns a você”, ganhava passe livre pelo resto do dia. Podia ir aonde quisesse, voltar na hora que quisesse. Era como um rito de desprendimento dos grilhões familiares que minha mãe havia estabelecido em etapas anuais desde a primeira série. Aos 6 anos, em meu primeiro dia de liberdade, fui visitar meu pai. O metrô até o fim da linha, depois outro ônibus até a funerária onde ele trabalhava. Gostava de ficar lá, observando as pessoas que passavam na movimentada avenida à frente da loja. Uma quadra acima estava o Hospital de Clínicas. Toda vez que uma sirene anunciava uma ambulância mais apressada, ele e o André, o dono, faziam a mesma piada, mesmo tendo uma considerável coleção delas. Sempre riam com igual intensidade. Eu os acompanhava, não pelo chiste, mas porque o riso era contagiante como um bocejo. Passavam o dia lá, lendo Tex, Fantasma, Conan, distribuindo elogios estranhos às passantes, inventando novos gracejos com ambulâncias apuradas e rindo muito. Eu achava incrível que um lugar tão abútreo pudesse ser tão divertido. Volta e meia, conforme a frequência do infortúnio alheio, saía um ou outro com a Caravan preta a buscar um cliente. Também achava estranho chamarem cliente a quem não vai ser o pagante da conta, mas logo percebi que era pilhéria. Que a vida deva ser divertida, qualquer um pode concordar; eles, entretanto, aplicavam essa máxima ao extremo oposto da existência com tanta eficácia que sempre olhei para aqueles caixões com alguma simpatia.
Estávamos à mesa, eu dizia. Completava 10 anos. Pensei, enquanto tomava o metrô e decidia para onde ir, em algum sentido simbólico de se ter dois dígitos na idade, mas não me ocorreu nada muito bom. Meu pai e o André diziam coisas desconexas, mas interessantes, quando fumavam, então achei que seria bom visitá-los. Havia uma mulher sendo preparada. Eles ouviam Os Atuais e justificaram dizendo que ela havia morrido de enfarto no bailão da Scharlau. Dançava, sorria, de repente caiu. Queriam entrar no clima. O André estava admirado com a perfeição das sobrancelhas dela. Desligaram a música e ligaram a TV para que me distraísse enquanto acabavam. Vi uma multidão de japoneses chorando. Um imperador chamado Hirohito havia falecido. O André disse que ele fez harakiri porque tinha o pinto pequeno. Riram muito, mas eu não. Eu tinha um pinto pequeno de criança, olhos puxados à oriental – herança dele – e fiquei imaginando se meu pai riria no meu funeral. Nos aniversários seguintes, preferi ir ao fliperama.
Estávamos à mesa. Eu comia com pressa porque era meu aniversário e, depois do bolo e do insuportável “Parabéns a você”, ganhava passe livre pelo resto dia. Podia ir aonde quisesse, voltar na hora que quisesse. Era como um rito de desprendimento dos grilhões familiares que minha mãe havia estabelecido em etapas anuais desde a primeira série. Aos 6 anos, em meu primeiro dia de liberdade, fui visitar meu pai. O metrô até o fim da linha, depois outro ônibus até a funerária onde ele trabalhava. Gostava de ficar lá, observando as pessoas que passavam na movimentada avenida à frente da loja. Uma quadra acima estava o Hospital de Clínicas. Toda vez que uma sirene anunciava uma ambulância mais apressada, ele e o André, o dono, faziam a mesma piada, mesmo tendo uma considerável coleção delas. Sempre riam com igual intensidade. Eu os acompanhava, não pelo chiste, mas porque o riso era contagiante como um bocejo. Passavam o dia lá, lendo Tex, Fantasma, Conan, distribuindo elogios estranhos às passantes, inventando novos gracejos com ambulâncias apuradas e rindo muito. Eu achava incrível que um lugar tão abútreo pudesse ser tão divertido. Volta e meia, conforme a frequência do infortúnio alheio, saía um ou outro com a Caravan preta a buscar um cliente. Também achava estranho chamarem cliente a quem não vai ser o pagante da conta, mas logo percebi que era pilhéria. Que a vida deva ser divertida, qualquer um pode concordar; eles, entretanto, aplicavam essa máxima ao extremo oposto da existência com tanta eficácia que sempre olhei para aqueles caixões com alguma simpatia.
Estávamos à mesa, eu dizia. Completava 10 anos. Pensei, enquanto tomava o metrô e decidia para onde ir, em algum sentido simbólico de se ter dois dígitos na idade, mas não me ocorreu nada muito bom. Meu pai e o André diziam coisas desconexas, mas interessantes, quando fumavam, então achei que seria bom visitá-los. Havia uma mulher sendo preparada. Eles ouviam Os Atuais e justificaram dizendo que ela havia morrido de enfarto no bailão da Scharlau. Dançava, sorria, de repente caiu. Queriam entrar no clima. O André estava admirado com a perfeição das sobrancelhas dela. Desligaram a música e ligaram a TV para que me distraísse enquanto acabavam. Vi uma multidão de japoneses chorando. Um imperador chamado Hirohito havia falecido. O André disse que ele fez harakiri porque tinha o pinto pequeno. Riram muito, mas eu não. Eu tinha um pinto pequeno, olhos puxados à oriental – herança dele – e fiquei imaginando se meu pai riria no meu funeral. Nos aniversários seguintes, preferi ir ao fliperama.
4 replies on “[ o harakiri de Hirohito ]”
Tex e Fantasma!
uhul!
E eu sou velha! hahahahahahaha
mas de idade mental eu tenho 18, sou revolucionário ainda…
Bah, Sandro, memórias, sejam verdadeiras ou não, sempre me arrebatam. Deixo aqui de novo os parabéns pelo “cumple”, se não ficou claro lá no PA.
Abração!
memórias verdadeiras são as que resistem ao esquecimento. as outras eram todas invenções fracas =)