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[ in vino memoria ]

Aquele clássico: tava chegando na esquina, o bus passou. Vazio ainda por cima. Nem um minuto depois, pá, o executivo. Viagem tranquila, mesmo com a moça roncando [de leve] no banco de trás. Quando eu tava lá na frente, já na porta esperando pra descer, o motorista me olhou, riu e virou pra frente de novo. Olhei pra frente, aí me olhou de novo. Virei pra ele, que sorriu, deu uma gaguejada, mas acabou falando.
– Tu vai rir, mas tu me lembra uma pessoa… por causa da barba. O frei Francisco. Eu era coroinha lá em Lajeado, eu e meu primo. Ele era bem velho, o frei Francisco, mal andava. Deixava a gente tomar o vinho dele.
Eu só balancei a cabeça e sorri. Não sei se ele viu o sorriso, porque o meu é meio embargado por fora, mas por dentro garanto que tava gigante. Normalmente penso e interajo rápido, mas dessa vez não senti vontade, não vi necessidade, mas senti que havia muita coisa não dita. O sorriso dele ia completando essas lacunas às quais não tive acesso.
O ônibus foi parando, mas continuei esperando a conclusão. A porta se abriu, mas como só eu desceria ali, dei aquela hesitada. Ele encerrou:
– Mas olha, era um vinho bem bão! Hahahaha.
– Dá pra ver nos seus olhos! Obrigado. Boa viagem.
– Boa aula.
Tudo aconteceu muito rápido, talvez um minuto, no máximo. Um minuto é um intervalo através do qual a memória, em sua infinita capacidade de dilatar o que os ponteiros metrificam, consegue conectar cidades, nomes, vinhos e vidas com seu implacável gatilho.

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Surdos ou estrangeiros e vice-versa

Em minhas primeiras incursões no mundo da Libras, ouvi uma frase importante: “ser surdo é ser [tratado como] estrangeiro em seu próprio país“. Foi impactante porque arrancou os surdos da invisibilidade deles que havia em mim. Pois hoje, no Angeloni dos Ingleses, dois rapazes, ambos funcionários, conversavam no estacionamento. O brasileiro explicava ao argentino [depreendi da conversa sua nacionalidade], recém-chegado ao trabalho, alguns procedimentos diários. Ele falava tão alto e tão pausadamente que na hora me ocorreu uma analogia óbvia do ditado aí de cima: ser estrangeiro é ser [tratado como] surdo em qualquer país.
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Heineken; redenção

Greve dos bancários. Estou há 20 minutos mofando na fila da lotérica de um shopping a fim de pagar umas contas. Com aquele Araketu maroto pipocando no fone, observo as pessoas que passam e, à revelia do que a vida incita, tento me manter animado. É o que faço o tempo todo quando estou na rua. Em casa, sem dúvidas, prefiro silêncio e introspecção. Tudo corre bem até que percebo que um cara no braço da fila oposto ao meu está me encarando. Olhar fixo, cenho cerrado, análise em curso. Faço de conta que não vi, mas ele continua olhando. A menina agarrada ao braço dele fala sem parar. Ele responde “aham”, mas nem vira o rosto. Até que chega o encontro: eu de um lado da fita, ele do outro. Toca no meu braço, tiro os fones e ele pergunta:
– Ô, camarada, tu não conhece o Bruno Bebê Gigante lá do centro? Tá sempre ali perto do Energia, por ali.
– Cara, conheço de nome. Por quê?
– Porque eu tava olhando bem pra ver se era tu mesmo a pessoa que eu lembrava. Uma vez eu tava lá com ele numa nóia fodida e bateu aquela badzona, tá ligado? Acabou o bagulho, acabou o dinheiro e eu tava com muita fome. Ele é cara dura, sempre foi, aí foi numa lanchonete dum árabe na esquina, nem tem mais aquela lanchonete, e pediu um rango pra alguém. O cara pagou 2 calzones, mas o Bruno é cara dura e pediu uma bebida também. O cara botou uma Heineken pa nóis. Mas eu não fui lá, fiquei sentado ali atrás do Correio. Dali a pouco tu passou e ele gritou pra ti “Valeu aí, camarada! Se precisar de nóis, tamo aqui”. Era tu mesmo, né?
– Sim, era eu. Era um sanduíche de falafel muito bom. Pena que fechou.
– Então, cara. Uns dias depois eu conheci minha gata aqui e ela que me tirou daquela vidinha. (Ela sorri orgulhosa e encosta a cabeça nele). Nem vi mais o Bruno, na real, mas deve tá puxando uma cana. Novas!
– Ele era da correria, né?
– Era, era. Mas eu não, eu só tava numa época ruim, tava meio perdido na vida.
– Mas agora tás bem?
– Agora sim. Agora tô com ela, né? (e beijou a cabeça da moça).
– OK, mas fiquei curioso. Por que tu me abordou assim, no meio do nada, pra falar disso?
– Ah, sei lá, desculpa incomodar, eu só lembrei que foi uma coisa legal que aconteceu comigo naquela época de merda. Desculpa mesmo. Mas aquela cerveja foi a melhor que eu tomei na vida. Hoje eu prefiro Skol, mas aquela foi a melhor.
– Que nada, cara. Não pede desculpas. Obrigado por compartilhar isso. Eu nunca saberia que aquilo foi importante se tu não tivesse me falado. Obrigado mesmo. Pode não parecer, mas fiquei muito feliz.
– Posso te pagar uma ceva depois?
– Cara, não bebo há muito tempo, mas se fosse pra voltar a beber, este teria sido o dia mais propício até agora. Preciso correr daqui pra aula. Valeu mesmo.
 
Aperto a mão dele e a fila anda. Ouço ela dizer “Foi legal isso que tu fez. Fiquei emocionada. Ai, te amo“.
Troco o Araketu por um Portishead, começo a fazer a contabilidade dos meus boletos para desligar um pouco o hemisfério bobo do cérebro e chega minha vez. Nesse ínterim, rememoro algumas coisas daquele dia [por exemplo, o fato de que, depois de ganhar os comes e bebes, o Bruno Bebê Gigante, cuja participação na história conto em outro momento, tentou me vender um iPhone de procedência duvidosa] e rio. A coisa que acho realmente estranha nisso tudo é alguém preferir Skol a Heineken, mesmo sem beber há anos e sem nunca ter gostado de cerveja. O resto é só vida real.
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Empreendedorismo infantil, aula 1

Tava tomando café numa padariazinha aqui do centro e entraram dois moleques vendendo chocolates. Os dois muito bem apresentados, roupinha nos trinques, cabelio lambidinho pro lado e tudo. Venderam alguma coisa, mas as pessoas sempre olham com aquela cara desconfiada, puxam a bolsa pra mais perto do corpo, fingem que estão fazendo uma ligação, enfim. Eles vieram à minha mesa e achei que, apesar do visual estar interessante, eles precisavam de mais do que isso. Resolvi ajudar.
— Olha só, moskiridus… a roupa tá massa, cabelo penteado e tudo, mas vocês já notaram que as pessoas ainda olham pra vocês de canto de olho, né?
— Sim, e isso é bem chato. A gente tá trabalhando, elas não enxergam? – Disse o mais velho.
— Cara, até enxergam, mas ignoram. Posso propor um teste pra vocês?
— Pode.
— Na próxima abordagem, digam assim

Boa tarde, senhor(a). Hoje a gente tá trazendo uma informação.
[aí vocês esperam a reação; se houver, continuem; se não houver, continuem igual]
O(a) senhor(a) sabia que o dono da Cacau Show começou vendendo chocolate num Fusca? Pois então, a gente ainda vai demorar pra poder dirigir, mas até lá, estamos batalhando pra que seja um carro mais novo, né?
[aí apresentam o produto].

— Hahahaha, legal! Gostei disso.
— Então, é fácil. É só decorar o texto. Vou escrever aqui nesse papel.
— Não, não, grava aqui no meu celular.
— Ok, gravo. – E gravei mesmo.
— Massa, tio.
— Massa nada, agora me dá um chocolate desses aí pelo serviço prestado.
— Sério?
— Claro, rapaz. Ou tu acha que as pessoas vão te dar alguma coisa de qualidade assim, do nada, de graça? Isso aqui é o planeta Terra, não é assim que funciona.
— Tá bom, tá bom, tó.
Peguei o chocolate, fingi que li o rótulo, entreguei-o de volta.
— Tem leite, não como. Tenho alergia.
— Então pega esse aqui que não tem leite, mas é bem ruim e é mais caro.
— Não tem problema, não vou te pagar mesmo.
Esperei uns segundos e continuei:
— Mentira, cara, não quero teu chocolate, tava só te testando.
— Mas pode pegar mesmo, tio.
— Não quero, não gosto de chocolates, na verdade.
— Uma mulher me disse esses dias que não dá pra confiar em quem não gosta de chocolates.
— E quem foi que te deu um conselho útil, ela ou eu?
— Tu, né.
— Então ela falou bobagem. O papo tá bom, mas agora preciso ir.
– Valeu pela dica, tio.
— Não por isso, mas se tu me chamar de tio de novo, te penduro no ventilador de teto.
Ambos saíram correndo e, já na porta, gritaram quase juntos:
— Falôôôôô, tio!

Moral da história: eu sabia que um dia aquelas historinhas que aparecem nas revistas de bordo da Gol iam ser úteis.

P.S.: adoro chocolates, só achei que era mais fácil encerrar a conversa assim.

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Outras dermatoses

Aí o cara vai fazer um exame dermatológico numa policlínica pública. A moça chama o nome dele. Ele entra, ela tranca a porta, senta e começa a explicar o procedimento:
— Alguém já te disse como se faz esse exame?
— Não, ninguém.
— É bem simples. São fotos. Se na tua requisição disser, por exemplo, dermatose no braço ou na perna, tiramos a foto do braço ou da perna.
— Parece justo.
— Mas se disser “outras dermatoses”, aí é de corpo inteiro. Mas pode ficar de cueca ou de sunga.
— Sunga eu não trouxe, não sou exatamente o cara mais prevenido do mundo, né? Que pensa “buenas, vou fazer um exame dermatológico; levo a carteira do SUS, uma banana de lanche e uma sunga, só pra garantir”, mas a cueca tá a postos.
— Hahaha, você é engraçado. Mas vamos lá. Deixa eu ver aqui… ó, tá vendo aqui na tela? “Outras dermatoses”.
— Mas ali no bonequinho tem só 2 pontos marcados no braço esquerdo, que é onde apareceu essa alergia…
— Sim, mas ali diz “Outras dermatoses”. Aí é como te falei…
— Corpo inteiro, entendi.
— Isso mesmo. Então pode tirar e ficar em pé ali naquele tapetinho.
Tirei a camisa e fui. Ela foi rápida:
— A calça também.
A essa altura, já sem camisa, sem tênis e sem dignidade, a calça era o de menos. Foi-se.
Ela pegou a câmera, uma Sony Cyber Shot DSC-W800, parou à minha frente, focou bem e bateu a foto.
— Fica tranquilo, a cabeça não aparece.
— Juro que nem pensei nisso.
— Agora vira de costas.
Virei. Ela clicou e disse:
— Ok, pode virar de novo. Só um minuto.
Anexou algo parecido a uma pequena lanterna à máquina, só que com uma lâmina quadrada de vidro na ponta. Passou um gel daquele que se usa em ultrassonografias na tal lâmina, veio até mim, encostou no ponto 1 do braço, bateu a foto, encostou no ponto 2, bateu a foto. Conferiu no visor e deu alta:
— Ok, pode se vestir.
Confirmou a data em que minha médica receberia os resultados e a partir da qual eu poderia marcar a consulta de retorno. Destrancou a porta, abriu-a e saí.
Demorei alguns minutos para processar tudo. Por que raios aquelas fotos de frente e de costas se o bagulho era no braço? Na mesma hora me veio à mente a imagem dela abrindo o Whatsapp e enviando as fotos com a legenda “sofrendo na firma”, “dia corrido na repartição” ou “cueca preta, minha favorita”. A médica solicitante do exame responderia “esse aí eu manjo kkk”. Outra diria “aff, e eu aqui em casa morrendo de tédio”. Todas ririam, mas em poucas horas outro desafortunado entraria no feed e eu [sem cabeça, pelo menos] seria esquecido.
O nome do grupo? “Outras dermatoses”, tenho certeza.

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Abre-te, Sésamo!

“Um copo d’água não se nega a ninguém”, diz um ancestral axioma. Há quem mui maliciosamente adicione “um boquete” à fórmula, mas aí já é pura invenção modernosa. Apesar de acreditar que o ditado está completo apenas com água, ontem algo sucedeu que me fez pensar em um companheiro digno para ela nesse panteão dos favores inegáveis.
Estava terminando os últimos detalhes para a apresentação dos jogos que produzimos durante o semestre no curso de games do Senai quando ouvi um bater de palmas. Abri a janela e vi um sujeito lá parado. Ele tinha cerca de 1,70, era meio gordinho, calvo e usava óculos. Trajava um conjunto de moletom cinzento bem surrado, mas limpo. Não parecia nenhum junkie desesperado querendo dinheiro, comida, cigarro, enfim. Parecia mais uma pessoa transtornada, nervosa, a quem alguma fatalidade recente tivesse atingido. Na extremidade de seus braços, largados rentes ao corpo, viam-se agitar freneticamente as mãos. Atendi-o.

— Boa tarde. Pois não?
— Boa tarde. Por favor, por favor, será que você poderia me emprestar o banheiro?

Acho que é normal que acontecimentos que fujam a uma suposta normalidade das coisas nos deixem um pouco atônitos por alguns instantes. É o cérebro querendo organizar a repentina desordem instaurada para manter o equilíbrio do universo. Passado esse pequeno desconcerto do mundo, essa tela azul da existência real, retomei a conversa.

— Como assim?
— É que eu moro um pouco longe, lá no finalzão dessa rua, e estou com muita vontade de defecar. Tô com muito medo de não conseguir chegar em casa e me cagar todo.

Ele estava bastante nervoso. As mãos sacudiam ainda mais e a voz soava meio embargada. Disse a ele que esperasse um pouquinho e fui falar com a mãe, que mora nos fundos. Pela descrição, ela imaginou que se tratava de um homem que sempre passava por ali e aparentava sequelas de algum derrame ou algo do tipo.

— Deixa ele usar o 9 [um dos kitchenettes que ela aluga]. Pega aqui a chave.

Fui até a frente e o cara já estava intimando outros inquilinos, mas sem sucesso. No pátio ao lado, onde um grupo de amigos fazia churrasco, ouviam-se piadas sobre o ocorrido. Levei-o até seu temporário oásis, entreguei um rolo de papel higiênico e saí.
Passaram-se muitos minutos. Fiquei preocupado e fui lá averiguar.

— E aí, tudo bem? – Perguntei da porta.
Ele confirmou que sim, mas acrescentou:
— Sabe o que é? É que está meio difícil…
— OK, fica à vontade. Quando acabar, chama a gente.

Em seguida saiu. A expressão dele era a de um mártir. Sorriu um sorriso largo, olhou no fundo dos nossos olhos, agradeceu e foi embora.
Eu poderia, depois dessa épica narrativa toda, dizer que aprendi alguma coisa sobre compaixão, sobre alteridade ou sobre coragem, mas não. Aprendi uma coisa mais simples, mas bem efetiva: há coisas neste mundo que, quando batem à sua portinha, não podem ser reprimidas. Hoje alguém clama à nossa janela. Amanhã, quem sabe, não somos nós fazendo cosplay do Lagreca [Hermes & Renato] no portão de alguém?

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A arte da motivação

Numa padaria aqui perto de casa, a atendente começa o diálogo com o dono (da padaria, no caso):
– Olha só, peguei as fotos do casamento.
– Só fotos? Mas tu não quis filmar?
– Ah, seu Henrique, muito caro, né? Mil e poucos reais pra filmar.
– Ah, mas parceladinho não dava?
– E aí eu vou ficar 5 anos pagando que nem carro? Eu não, filmamos tudo com celular mesmo.

Ele pensou um pouco, talvez não o suficiente, e mandou:
– Tá certo. Além do mais, daqui a menos de 5 anos já tão metendo chifre um no outro, os filhos espalhados pela casa dos avós, aquela coisa.
– Ai, seu Henrique, que coisa!
– E não é verdade mesmo?

Ela pensou bem pouquinho, deu um sorriso e disse:
– Pior é que é mesmo, né? Mas que seja que nem aquela música, ou poesia, não lembro bem: que seja duradouro enquanto dure.
– É isso aí, guria. Tem que pensar positivo sempre!

E riram gostosamente. A citação dela não é beeeem do jeito que ela mencionou, mas enfim, saí de lá altamente motivado. Vocês não sairiam?

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Síndrome de Glória Pires

A Síndrome de Glória Pires é definida como a incapacidade total ou parcial de emitir opinião relevante sobre qualquer assunto em uma dada situação discursiva. Sofrer dessa síndrome significa que você:

  1.  Poderá não conseguir produzir qualquer opinião assertiva sobre um tópico discursivo;
  2.  Se conseguir começar, a progressão temática será demasiado sucinta ou
  3.  em casos mais extremos, não conseguirá concluir o raciocínio com efetividade.

# Causas
As principais causas da síndrome são comportamentais e físicas.
As comportamentais podem estar associadas a apatia, tédio, falta de concentração espontânea ou deboísmo exacerbado.
As físicas têm relação com disfunções da garganta, cordas vocais, língua, boca, pulmões e outros órgãos. Dor, irritação ou desconforto físico nesses órgãos desestimulam a produção desde juízos de valor elaborados a meras respostas retóricas.

# A SGP e a surdez
Apesar de um pouco ingênua e limitada, é comum a analogia entre a SGP e a surdez, isto porque muitos dos surdos de nascença, por nunca terem ouvido, não aprendem a falar. Os gloriapiréticos, por nunca terem ouvido declarações embasadas e relevantes dentro de um contexto conversacional, não teriam condições cognitivas de produzi-las.

# SGP por escolha
Um variação bem mais rara – mas muito interessante – de SGP é o das pessoas que decidem voluntariamente não emitir opiniões sobre nada. Essa mutação da síndrome ocorrem normalmente por motivos religiosos, sociais ou educacionais, mas pode ocorrer em qualquer contexto e com qualquer pessoa; basta querer.

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J. D. Salinger e a inteligência alheia

Hoje é aniversário de J. D. Salinger [1/jan/1919 – 27/jan/2010]​, o mais capricorniano dos escritores. Foi depois de ler seu aclamado romance “O apanhador no campo de centeio” que me dei conta de que eu não era inteligente, era só um cara com meia dúzia de referências e uma boa memória para conhecimento enciclopédico. Era tão pessimista e ranzinza em relação ao mundo quanto o narrador Holden Caufield, mas me sentia meio Sally Hayes:

“Antigamente eu achava a Sally muito inteligente, mas só de burro que eu sou. Só porque ela entendia de teatro, e peças, e literatura e todo esse negócio. Quando as pessoas sabem um bocado sobre essas coisas, a gente leva um tempão para descobrir se são burras ou não. No caso da Sally eu levei anos. Com certeza teria descoberto muito antes, se nós não tivéssemos namorado tanto. O meu problema é que eu sempre acho inteligente a pequena com quem estou me esfregando no momento. Uma coisa não tem droga nenhuma a ver com a outra, mas continuo pensando assim”.

Apesar de que naquela era pré-Google tal habilidade fosse um pouco mais importante, fiquei muito triste, como qualquer adolescente melancólico e de baixa autoestima ficaria. Ao mesmo tempo, aquilo me lançou ótimas perguntas. O que fazer para ser uma pessoa inteligente? Inteligência é dom, é treino ou um pouco dos dois? É realmente importante ser inteligente? As pessoas burras [as realmente burras; não era o caso da Sally Hayes, o narrador exagera um pouco] são mesmo mais felizes?
Nunca consegui responder nenhuma delas. Aliás, rapidamente cheguei à conclusão de que essa era uma empreitada pouco recompensadora. Teve valor, claro, e foi o de me mover em direção a coisas novas, a métodos novos de aprender, mas nunca quis de verdade resolvê-las.
Hoje, ligeiramente mais autoconfiante, mas tristemente mais enciclopédico do que nunca, consigo pelo menos usar essas referências esdrúxulas e aleatórias para fins objetivos. Escrever, por exemplo. As perguntas são outras, mas igualmente insolúveis. Ainda bem.
E vocês, já tiveram essas dúvidas? Já pensaram nisso? Já se sentiram inteligentes ou burros demais em alguma situação? Contem pra mim.

The Catcher in the Rye (1951), by J. D. Salinger.
The Catcher in the Rye (1951), by J. D. Salinger.
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Niilismo para crianças (em lições simples e fáceis de entender)

Diálogo presenciado ontem entre um pai e sua filha, de uns 7 anos, numa sorveteria:

– Mas tu acha justo, filha, eu ficar assando a carne por horas e depois ter que ajudar a lavar a louça ainda?
– Mas ela também trabalhou antes de assar a carne.
– Olha, tem muita coisa de desigualdade ainda porque é uma coisa histórica. As mulheres não tinham acesso à educação, aí foram ficando sempre com os trabalhos que pagavam menos. Mas esse negócio de o homem ficar assando a carne e a mulher lavando a louça é diferente. Isso é muito mais biológico do que cultural.
– Biológico??? [ela realmente se espantou]
– Sim. É só ver o que acontece na natureza.

Nesse momento, fiquei imaginando uma esquilinha [perdoem o neologismo] lavando as nozes que compraram no Macro [na promoção] enquanto o esquilinho coloca fogo no carvão para começar o churrasquinho. Me ajudou a entender melhor a proposição do nobre papai.

– E te digo mais, filha. Todo mundo tem opiniões diferentes, mas o que é errado é a gente ser niilista com as nossas opiniões. Sabe o que é niilista?
– Não sei.
– É extremista. Não pode ser extremista, achar que só o que a gente pensa é que está certo.

Ela estava visivelmente pouco convencida pelas palavras do pai e seguiu firme em seu sorvete. Já eu, mera testemunha, fui embora meio descrente no tal “progresso nas relações de gênero” do qual se tem falado tanto, mas absolutamente firme na minha ideia niilista [ou seja, extremista] de que o certo mesmo é não fazer churrasco de jeito nenhum.
‪#‎GoVegan‬